Sociedade do “Já amanheci cansada”
- Luísa Kanaan
- 22 de set. de 2020
- 3 min de leitura
Com certeza alguma vez você já viu ou usou aquele filtro do Instagram “Já amanheci cansada”. E, quem nunca ouviu falar, pelo menos alguma vez já disse essa frase. Estar exausta parece ter se tornado o modus operandi de todo mundo e, somado ao “estou na correria”, um símbolo de status, de que você é empreendedora e está se dedicando 200%.
Acontece que essa sensação de nunca descansar é um sintoma da sociedade na qual estamos inseridas, a sociedade do desempenho ou, como o filósofo coreano radicado na Alemanha Byung-Chul Han teoriza, a sociedade do cansaço (que também é o título do livro sobre o qual vamos falar). Ao contrário das eras anteriores, nas quais as instituições diziam o que você devia fazer, na atual passamos do dever para o poder. Eternizado no “Yes, we can” (sim, nós podemos) de Barak Obama, agora todos são empreendedores e empresários de si mesmos com uma infinidade de possibilidades nas mãos.
Nós, os atuais “sujeitos de desempenho e de produção”, orientados pelo discurso das possibilidades infinitas, dos projetos, sempre em busca da motivação, eficiência e iniciativa passamos a ser os patrões exploradores de nós mesmos. Trabalhamos com empenho em alcançar metas inalcançáveis (e quando alcançarmos a meta, dobramos ela) e vivemos a angústia de não estar fazendo tudo o que seria possível. Nem o mais tirano dos patrões poderia ter pensado em melhor forma de exploração do que a feita pela própria pessoa sob pretexto de liberdade. Em entrevista ao El País, Han afirmou que “Hoje a pessoa explora a si mesma achando que está se realizando”.
Como bem observado pela escritora gaúcha Eliane Brum em uma resenha sobre o livro de Han: somado às flexibilizações e discursos sobre empreendedorismo, os autônomos “estão livres para se matarem de trabalhar” e “empregados se ‘autonomizam’ porque a jornada de trabalho já não acaba (o chefe nos alcança em qualquer lugar). Todos trabalhadores culpados porque não conseguem produzir ainda mais”. Nesse sentido, a pesquisa do Ibope de 2013 não poderia deixar as coisas mais claras: 98% dos brasileiros se sentem cansados mental e fisicamente.
Toda essa aceleração e positividade (no sentido de poder tudo) resulta em, segundo Han, pessoas que se sentem fracassadas, depressão, compulsões, anorexia e síndrome de brunout (esgotamento). Afinal, pela lógica social, se tudo é possível, como eu não posso? Nesse cenário, em que você é seu próprio algoz, que é patrão e empregado, “Não há mais contra quem direcionar a revolução, a repressão não vem mais dos outros”, disse o autor coreano ao El País. De acordo com Han, o excesso de estímulos da nossa época também é responsável por outros transtornos como a de déficit de atenção (TDAH), borderline, entre outros.
Ainda muito prezada em empresas e entre empresários, a multitarefa não é evolução, segundo o autor, pois essa qualidade já está bem difundida entre os animais, que precisam estar atentos aos predadores enquanto comem, por exemplo. Entre humanos, a multitarefa só nos faz perder a capacidade de fruir a vida, de contemplar, de criar algo novo. Citando Walter Benjamin, o coreano aponta que é o tédio profundo que choca o ovo da experiência. Sem o tédio, não é possível descobrir coisas novas.
Falando sobre uma situação hipotética de quem se entedia ao andar, Han reflete que “[...] quem é tolerante com o tédio, depois de um tempo irá reconhecer que possivelmente é o próprio andar que o entedia. Assim, ele será impulsionado a procurar um movimento totalmente novo. O correr ou cavalgar não é um modo de andar novo. É um andar acelerado. A dança, por exemplo, ou balançar-se, representa um movimento totalmente distinto” (p.35).
Ao contrário, o tempo que hoje temos disponível para fruir, na realidade é usado para recuperar o corpo para poder recomeçar a rotina exaustiva ou ainda para adquirir uma nova habilidade para essa rotina. Assim, hoje o tempo de descanso não é um tempo de contemplação/fruição. É um espaço destinado a seguir alimentando a engrenagem. Han ressalta que, para superar as desordens causadas pelo comportamento de trabalho 24x7, cada vez mais se recorre aos medicamentos para aumentar capacidades ou para ajudar a dormir. Ele chama isso de sociedade do doping, que busca superar os limites do corpo em benefício do sistema.
“Exaustos-e-correndo-e-dopados", como bem sintetizou Brum, virou a condição humana dessa época. Como profetizou Nietzsche, um dos autores com quem Han dialoga ao longo do livro: “Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie”.




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